Jordâna escutava Girl dos Beatles quando sua secretaria anunciou um casal para consultá-la. Pegou um cigarro. Dessa forma ela escolhia para quem trabalharia. Os pulmões são seus e o cigarro paga imposto, portanto se tiver câncer ou qualquer coisa que valha terá seu leito num equipado hospital.
— Se importam? Não consigo raciocinar.
— Tudo bem – responderam.
Passaram no primeiro teste. Ela os contratava e depois apagava o cigarro no cinzeiro. O segundo veio deles.
NEOCLÁSSICO.
— Vocês vão fazer um estudo sobre o que é o neoclássico. Temos sérios problemas arquitetônicos no Brasil hoje graças ao neoclássico. Tudo bem que ainda estamos longe de uma guerra armada…
— Guerrrra armada? – assustou-se o marido que corria ligeiro pelas folhas do dicionário.
— Não é o arquiteto quem deve fazer o estudo das escolas arquitetônicas? – a esposa parecia entender melhor a língua.
— Eu não era muito boa nessa matéria na faculdade então prefiro quase sempre que meus clientes façam isso e descubram do que gostam e se realmente querem. O neoclássico é um grande problema que temos na arquitetura contemporânea. Precisamos sentar e conversar mais vezes sobre isso.
Após olhar no dicionário:
— Acho justo – disse o marido.
Melhor, Jordâna precisava dar um tapa na cara de seus clientes.
Começou:
— São nisseis?
— Somos japoneses.
— Por causa do sotaque imaginei que fossem. Fala bem português. Pensei em algo melhor.
— Diga! – prosseguiu a mulher.
— 300 anos de Ukiyo-E me parecem apropriado. Não há porque quererem neoclássico. Vamos à cultura de vocês. Prometo estudar e vocês me dizem o que não querem. Simples.
Dias depois Jordâna foi visitar o terreno junto com o casal e Augusto apareceu.
— Eu era boa nessa matéria Augusto.
— Qual?
— Visitar terrenos.
— E isso era uma matéria?
— Não, era uma piada.
Augusto com máscara no rosto por causa da quimioterapia.
Arquiteta desleixada. Casal de japoneses sem filhos.
O terreno. O sol. O norte, o nordeste e o leste.
Primeiro bateram juntos uma palma para o leste de frente para o sol.
— Para a Deusa Amaterasu Omikami[1] – explicou Jordâna para Augusto.
A arquiteta direcionou Augusto para o nordeste e todos bateram uma única palma.
— Para o imperador. Ele é filho da Deusa.
— Você acredita nisso? – Augusto ri.
— Acredito em coisas ou forças com as quais não sei explicar. Acredito que é isso. Não foi assim com Adão? Ele catalogava os animais e viu que só ele não tinha par. De uma observação veio à questão e da questão veio tudo isso – Virou-se pelo bairro do Itaim Bibi – Eu acredito que as mesmas explicações que dá vida a Deus podem perfeitamente anulá-lo. Então nunca rio de coisas que não sei.
O casal conversava num canto do terreno com um homem que acabara de chegar. Este andava pelo terreno junto com eles.
— Vamos Augusto, o Xamã chegou.
— Chá o que?
— Xamã. Um guia espiritual.
Ficou unido a arquiteta durante um bom tempo. Observava o guia abanando um galho de sempre-verde com um pedaço de linho andando pelo terreno.
— E então? – perguntou Augusto.
— É para dar sorte e neutralizar demônios.
A esposa veio falar com Jordâna.
— Há três portões de demônios no terreno. Temos que purificá-lo. Durante dois meses não podemos colocar nada. Nem material nem gente, nada. Apenas meu marido e eu podemos entrar. Três pontos venha ver.
A arquiteta seguiu a mulher e parou na entrada do terreno.
— Posso entrar? – Jordâna.
— Sim. Ainda não foram purificados. Temos de neutralizar esses pontos com sal. Nada pode ser construído nesses pontos – a mulher falou tão sério que a arquiteta pensou numa questão de vida ou morte. E era.
— Perfeito! – respondeu desenhando a casa na mente com os três portões neutralizados.
O guia e o casal já tinham ido embora quando Augusto e a arquiteta foram buscar os carros no estacionamento. Apesar de Augusto fugir do motorista que teve que contratar, por causa da saúde, como o vampiro que foge da cruz.
O carro de Augusto era enorme e escolhido a dedo por Levy. Ele quase arrancou os cabelos que já não tinha mais e disse se fosse sequestrado ele pagaria o resgate. Levy disse que o carro era blindado etc.
— Ahhhhh! – gritou Augusto.
— Ai meu Deus o que foi? – falou a arquiteta.
— Você desenhou as flores de Takashi Murakami no fusca.
— Eu gosto do trabalho desse cara e por ele fui perseguida pelo casal que você conheceu. Bom, agora vamos do imperador japonês para Carmen Miranda.
[1] Amaterasu (天照), também conhecida como Amaterasu-Oho-No-Kami (天照大神), cujo nome significa “Grande Deusa Augusta que ilumina o céu“, é a Deusa do Sol, divindade japonesa que vela sobre os homens e os enche de benefícios. Nasceu do olho esquerdo de Izanagi (伊邪那岐) e domina o panteão xintoista, em que figura um certo número de personificações das forças naturais. É representada empunhando um disco solar;